A PARTIDA
Acordou com as mãos cerradas, como sempre. Tentando prender o que escapa.
Na fresta da janela, luz crua de sete da manhã. Dentro dela, uma ausência estranha — não leveza, mas falta de luta.
O coração, acostumado ao murmúrio opaco da tristeza, trazia outro pulso. Não melodia: pergunta seca no peito.

Olhou para a cadeira vazia da cozinha, onde a melancolia costumava se sentar. — Hoje não — disse, com a voz áspera de quem dormiu mal. O som não trouxe alívio. Trouxe vertigem.
Sabia — não por revelação, mas pelo cansaço nas juntas — que era hora de partir. Não da casa. De si mesma.
Fez uma mala pequena. Colocou um caderno de capa gasta, metade em branco, uma pedra lisa achada na infância, um lenço manchado de tinta azul. Tentar levar o essencial era tolice, mas precisava dessa tolice para se mexer.
O chão frio da cozinha prendeu seus pés descalços por um instante. O vento entrou pela janela aberta, remexeu contas não pagas na mesa, espalhou rascunhos pelo linóleo. Parecia cúmplice. De alguma coisa.
A vida sempre fora uma sala de espera de relógio quebrado. Agora o chamado vinha de dentro: um apito seco no ouvido, insistente como zumbido de mosquito. O ar cheirava a terra molhada do quintal e gasolina da rua. Respirou fundo. No peito, algo áspero e pontiagudo fincou raiz. Doía igual a fome.
Lá fora, nada extraordinário: um gato amarelo cruzou a rua. Um caminhão de gás buzinou três vezes. A luz era comum, sem promessas.
— Vamos — disse para o espelho embaçado do corredor. Sua voz voltou como um eco de alguém que já não morava ali.
Não voou. Escalou a própria resistência. No início, cada movimento era contra uma corrente invisível. Os músculos protestavam, a cabeça insistia em enumerar tudo que deixava para trás: a conta de luz, o gato que miava na madrugada, a rotina que a protegia do vazio. Quis parar três vezes. Parou duas.
Quando conseguiu se ver de longe — como quem sobe um morro e olha a cidade pequena lá embaixo —, a casa parecia frágil, de papelão molhado. A vida, um mapa gasto de rotas riscadas e atalhos que não levavam a lugar nenhum. As preocupações, encolhidas nos cantos escuros dos cômodos, prontas para saltar sobre ela quando voltasse.
Riu baixo, sem alegria. Não de desprezo, mas de estranheza: era possível sentir-se estrangeira na própria pele.
A estrela da manhã era só um ponto prateado no azul desbotado do céu. — Pensei que tivesse desistido — disse uma voz que podia ser sua própria, ecoando. — Quase — respondeu, com a garganta apertada.
Caminhou devagar por um território que não tinha geografia. Tentou cantar uma música da infância; saiu um sopro rouco, desafinado. O silêncio pesava nos ouvidos como água. A solidão não era companhia — era fome de conversa que ninguém podia matar.
Quando o sol baixou — não cansado, apenas indiferente —, soube que a partida real começava no retorno. Sempre fora assim: a viagem estava no caminho de volta.
Desceu devagar, as pernas bambas, as mãos vazias guardando ainda o gosto metálico do ar rarefeito lá em cima. Não havia cavalo místico, só a gravidade puxando o corpo para casa.
Chegou quando os postes de luz acendiam suas manchas amarelas no crepúsculo sujo da cidade. Sentou-se na mesma cadeira da cozinha. A pedra da infância pesava no bolso como um peso sem razão. A melancolia estava lá, esperando, mas havia agora um espaço novo ao lado — não vazio, apenas diferente.
A poesia não era um lugar para onde se vai. Era uma cicatriz no jeito de olhar as coisas comuns.
