A menina que roubava livros
O filme é uma adaptação para o cinema do livro de Markus Zusak. Direção: Brian Percival (da série Downton Abbey). Trilha sonora: John William/Ano: 2013/ USA.
Elenco: Geoffrey Rush, Emily Watson, Sophie Nélisse, Nico Liersch
É evidenciado o período histórico da época. É uma obra que se passa na Alemanha nazista onde podemos ver durante todo o filme o clima de guerra e de perseguição pelo nazismo. É notável a influência do Nazismo no cenário local: temos bandeiras nazistas espalhadas por todos os lugares, nos prédios, nas escolas tudo retratando detalhadamente como era a Alemanha naquela época. O objetivo da trama é analisar a humanidade através de exemplos de vida como a da jovem Liesel, filha de um comunista em plena ascensão do nazismo.
É entregue a um casal de alemães para adoção e tem que se adaptar à nova vida e elaborar a separação com a mãe. Sem saber ler ela sofre, mas é acolhida pelo novo pai que a ensina com paciência e por seu vizinho Rudy, que se torna seu melhor amigo.
Ela é uma jovem que valoriza o conhecimento e o desenvolvimento intelectual. “Sabe” que os livros podem trazer um novo e outro mundo. Começou a “roubar” livros no enterro de seu irmão – Manual do Coveiro.
O segundo livro que Liesel rouba em sua vida é uma Obra que escapou da fogueira de livros feita pelos oficiais nazistas na cidade de Molching. Essas queimadas aconteciam devido ao pensamento que de toda expressão artística de judeus e poloneses não caracterizava a alta intelectualidade da raça ariana (vista como superior pela ideologia nazista).
Na verdade, quando uma sociedade enlouquece ela não consegue conviver com a pluralidade de pensamentos e de pessoas. Ela torna-se defensora de um só pensamento, uma só religião, uma só visão. E torna-se autoritária, cruel e empobrecida. O mal se instala quando o pensamento não pode ser livre. A queima dos livros simboliza um ataque ao saber, ao desenvolvimento.
O casal Hans e rosa vivido por Geoffrey Rush e Emily Watson trazem por um lado o pai que emana bondade e cuidados com a garota, já Emily Watson nos passa a dureza que mascara o verdadeiro coração daquela mulher sobrevivente, vítima também da guerra e sua inutilidade.
É um filme bem feito. Busca mostrar o sofrimento devastador das pessoas vitimadas pela guerra. Consegue nos apresentar a narrativa honesta sobre uma menina especial. Tão especial que chamou a atenção do anjo da morte que diante de seu desprezo pela humanidade, achou relevante nos contar sobre ela.
Liesel também assiste à passagem dos judeus por sua cidade. Esse tipo de evento, conhecido como desfile, era comum nas cidades da Alemanha. Guiados para os campos de concentração, as vítimas do holocausto eram maltratadas e obrigadas a caminhar por longas distâncias sem alimento ou água. É em uma dessas passagens que Liesel é empurrada e machucada por um oficial nazista ao se misturar com os judeus.
Já Rudy, que sustenta um amor intenso e inocente pela menina que roubava livros, faz parte da Juventude Hitlerista, organização criada para disseminar o pensamento nazista pelos jovens alemães. Disputas de corrida e que colocassem a força física à prova eram comuns para identificar possíveis “talentos” que fariam parte do exército alemão. É em uma dessas competições que Rudy é identificado como uma criança rápida e ágil. Outra coisa bastante comum durante o Holocausto é a punição (ou até mesmo perseguição) de alemães que não faziam parte do Partido Nazista. O pai adotivo de Liesel, Hans, recusava-se a participar do partido e, ao confrontar um oficial, foi chamado para a guerra. Existia uma tolerância muito baixa para aqueles que não se declaravam leais aos ideais de Hitler. Por fim, o preconceito e maus tratos aos judeus são retratados em diversas passagens do filme. A destruição de estabelecimentos administrados por judeus caracterizava o começo do que seria o maior assassinato em massa da história. O filme, uma adaptação fiel e extremamente bem feita da obra de Zusak, é capaz de fazer o espectador se emocionar e refletir sobre o que o ser humano é capaz de fazer.
A ficção em algumas situações é o melhor ângulo de onde se enxerga a realidade.
Marcus Zusak escritor australiano de origem alemã é o autor do livro, adaptado para o cinema. Ele criou uma das personagens inventadas mais reais para retratar o drama daquelas pessoas de carne e osso – que entre 1939 e 1945 – viveram histórias que beiraram o impossível.
Peço licença para inserir entre as testemunhas do conflito mundial, essa personagem que jamais existiu para além dos limites da imaginação deste autor, mas que na realidade, representa diversas meninas alemãs, filhas de alemães pobres, que viram os horrores do regime nazi-fascista. A própria mãe de Zusak serviu de referência para o autor criar sua história. Ele cresceu ouvindo-a contar sobre a vida escassa na pequena cidade onde nasceu. E, principalmente, ficou impressionado com as suas descrições dos cortejos de mortos-vivos formado pelos judeus que desfilavam por esses vilarejos a caminho dos campos de extermínio.
Marcus Zusak, criador de Liesel Meminger
Marcos Zusak, 34 anos, começa A menina que roubava livros assim: “Entre 1939 e 1943, Liesel Meminger encontrou a Morte três vezes. E saiu suficientemente viva das três ocasiões para que a própria, de tão impressionada, decidisse nos contar sua história”. Sim, é a morte quem conta a história dessa menina órfã que é levada para morar com um casal no interior. Impressionada pela capacidade de Liesel em sobreviver, a morte acredita que existe algo especial na criança magricela, quase feia, desengonçada, e obcecada por livros que vai viver com pais adotivos – um pintor de paredes e uma dona-de-casa, na cidade de Molching, nos arredores de Munique.
A história começa com a morte do irmão caçula de Liesel, de tuberculose e desnutrição. Durante o enterro do garoto, ela rouba seu primeiro livro, O Manual do Coveiro. Liesel não sabia ler e após a cerimônia, vai morar com Rosa e Hans Hubermann. O casal é pobre, precisa entrar em filas que parecem não ter fim para adquirir sua cota de ração, distribuída pelo exército nazista aos raros comerciantes de Molching. Faltava tudo, o mercado clandestino era a única forma de conseguir “luxos” como um quilo de açúcar.
Narrando o cotidiano de Molching, revelando detalhes como o fato de que todo pai era obrigado a matricular os filhos em escolas nazistas, todo profissional precisava ser filiado ao partido do fürher para poder continuar exercendo a profissão e que as crianças eram forçadas a decorar uma versão distorcida da história, Zusak descortina os bastidores da Alemanha dominada por uma ditadura cruel. Geralmente, os livros de história pintam todos os alemães como nazistas, colaboradores de bom grado. Aos poucos, a revisão desses relatos mostra que não foi bem assim. Houve coação, ameaça, fome, tortura, atentados. E claro, uma convincente propaganda cuja principal tarefa era “satanizar” os judeus.
O mérito de A menina que roubava livros é que ele mostra a guerra sob a ótica dos alemães pobres e não da elite nazista que defendia os delírios de Hitler por conveniência política e financeira. Na falta de dados da historiografia que deem conta desse cotidiano dilacerado pela realidade de bombardeios, sirenes, toques de recolher, leis marciais baixando sobre cidades inteiras, a ficção ou os diários pessoais, como o de Anne Frank, cumprem a missão de revelar os bastidores de uma terra arrasada. Felizmente, quanto aos diários pessoais, a história tem se debruçado cada vez mais sobre eles na tentativa de humanizar relatos antes restritos aos ícones e heróis nacionais legitimados. Já a ficção, com seus recursos que possibilitam sonhar acordado, compõem o quadro das experiências humanas e dão uma certa cor local aos eventos. Personagens e situações podem até ser inventadas, mas alguma base concreta elas tiveram: a experiência pessoal do autor, sua vivência, bagagem cultural, o mundo em sua rica diversidade. É preciso matéria-prima para criar, e a realidade é o fermento da ficção.
O ato de leitura como forma de se rebelar e adquirir consciência própria. As melhores obras sobre o absurdo do nazismo são aquelas escritas com base em experiências pessoais. Seja Art Spiegelman na criativa graphic novel “Maus” ou Markus Zusak em “A Menina que Roubava Livros”, ambos utilizam relatos de seus pais como matéria-prima para uma redenção pela Arte, resultando em produtos que entretém enquanto instigam a necessária reflexão. A adaptação feita pelo próprio Zusak, com o auxílio de Michael Petroni, segue com extrema fidelidade a trama original, subestimada por aqueles que acreditam se tratar de mais um “O Caçador de Pipas”.
Diferente de muitos repentinos fenômenos adolescentes fabricados pela indústria literária, o livro é muito bem escrito, com um estofo cultural perceptível nas referências que o autor utiliza, muitas delas foram transpostas para o filme. Como o momento precioso no livro, onde o jovem alemão busca se parecer com o corredor negro Jesse Owens, que três anos antes do início da narrativa havia chocado a sociedade alemã nas Olimpíadas, um feito eternizado pelas lentes da diretora Leni Riefenstahl no clássico “Olympia”. A adaptação compreensivelmente facilita para o público, inserindo a imagem de Owens sobreposta à do garoto. O alto nível das atuações, especialmente Geoffrey Rush (Hans) e Emily Watson (Rosa) como os pais adotivos, fortalece o intimismo original do roteiro, que se preocupa mais em retratar as transformações internas dos personagens, do que em emoldurar a devastação do Holocausto ou estabelecer estereótipos.
Com uma direção elegante e sensível de Brian Percival (da série “Downton Abbey”), cenas como a do resgate do livro na pilha em chamas ou o primeiro contato da protagonista com uma biblioteca, evitam o caminho fácil da pieguice. Ao invés de focar em uma trilha sonora melosa (o que é dizer muito, já que o compositor é John Williams) na cena da fogueira de livros, a câmera busca o rosto de Liesel (encantadora Sophie Nelisse) em detalhe, indo da inocente alegria inconsciente pela vibração da turba, à silenciosa constatação da loucura. Ela amadurece anos em poucos segundos. Mas a qualidade mais importante do filme consiste na bela história que conta, mais do que na forma que a conta. O ato da leitura como forma de se rebelar e adquirir consciência própria, rejeitando a devoção cega da sociedade em que está inserida. A emoção contida na observação da carta da menina, onde ela especifica que aprendeu a ler. Sua gradual compreensão de que apenas a leitura forma seres com pensamento crítico, constatando que, em mãos erradas, o poder da linguagem pode ser usado para a destruição, como o fez a propaganda nazista. A morte (Roger Allam) como a narradora que teme os vivos, assim como os vivos temem a morte, porém fascinada pela bravura de Liesel.
O roubo de livros começa antes mesmo de a menina saber ler, quando ela resgata o manual que cai da roupa de um coveiro, após o enterro de seu irmão. O que começa como uma tentativa ingênua e inconsciente de retomar o controle em um mundo que está desabando ao seu redor acaba se revelando um inestimável porto seguro emocional.
Eu amei ofiume
Sim o filme é excelente. Obrigado pela visita.
Cibele Brandão